sexta-feira, 13 de julho de 2012

Poder e política em nome de Deus

A Inquisição é tema que não se esgota. Instituída em 1232  pelo papa Gregório IX ela vigorou até 1859, quando o papado extinguiu definitivamente o Tribunal do Santo Ofício. Portanto, funcionou durante longos seis séculos. Devido a esta complexidade é que se optou por explorar o campo do confisco dos bens dentro do Tribunal do Santo Ofício, instituição  que tão bem se utilizou do  poder para  manter-se viva no seio da sociedade durante um longo período histórico. Entretanto, o assunto em questão aparece em todos os momentos da atuação do Santo Ofício, ficando por demais difícil fazer uma boa análise dentro de um período tão longo. Devido a isto delimitei um pouco mais meu campo de atuação e me restringi ao solo português, tentando entender a questão de forma mais precisa. A Inquisição em Portugal foi instituída em 1536, nos moldes medievais sob a liderança do poder régio. Diferentemente da Inquisição medieval, que possuía como objetivo maior o combate às heresias, a Inquisição portuguesa era comandada pelo rei que centralizava, fortificava e solidificava seu poder através do confisco dos bens. Afinal alguém teria que manter tão complexa estrutura. O alvo maior em solo lusitano era o cristão-novo, judeus convertidos a fé cristã, que a Inquisição julgava manter seus ritos judaicos secretamente. Acusados de profanar as hóstias e desvirtuar muitos cristãos do caminho de Deus, esse povo pagou com a vida e com seus bens a manutenção do equilíbrio do reino. Ë bem verdade que antes da Inquisição se oficializar em terras portuguesas os judeus tiveram proteção e abrigo em troca de alguns tributos especiais do próprio Estado, mas isso só durou enquanto isso trazia algum benefício ao poder régio. Instaurada a Inquisição era preciso que se tivesse hereges a serem perseguidos e nada mais cômodo do que unir o útil ao agradável, ter quem se queimasse na fogueira deixando todos seus bens para a santa madre igreja. É claro que a fórmula não é tão simplista assim, mas devido as circunstâncias tudo leva a crer que abusos dessa ordem eram cometidos, pois quando da instalação da Inquisição em solo lusitano, tentou se conter abusos no tocante ao confisco de bens. Tanto que pela bula de 23 de maio de 1536, a qual instituí o Tribunal do Santo Ofício em Portugal, se determinava que não deveria haver confisco de bens em todo o território por pelo menos dez anos. Em 1576, nova tentativa de se conter abusos decretando-se que seria excomungado aquele que tomasse os bens de judeus confiscados pelo poder da Inquisição. Neste sentido, pode-se dizer que se havia leis e decretos tentando coibir a ação da Inquisição sobre os bens de seus condenados é porque os abusos existiam e muitos foram os sacrificados em favor da permanência do poder régio e eclesiástico. O presente estudo teve como fonte histórica o Manual dos Inquisidores, obra escrita em 1376 por Nicolau Eymerich e revisado em 1576 por Francisco de la Peña. A obra se delimita a ação do Santo Ofício, esclarecendo o funcionamento, a estrutura e a atuação da Inquisição sob os auspícios da Igreja católica. A importância deste  manual para o presente estudo se funda na questão do confisco de bens que, pelo que se pode perceber muito bem, era praticado desde a gênesi da Inquisição. Sob a luz do conhecimento histórico, iluminado pelas luzes da fonte escolhida é que se propôs estudar o confisco de bens em terras lusitanas, tema de fundamental importância para entender a dinâmica do próprio Brasil colonial, pois afinal o nosso país é de posse portuguesa neste momento histórico. Essa pesquisa é pano de fundo para estudos futuros que pretendem desenvolver uma análise sobre a atuação da Inquisição lusitana em solo brasileiro. Pois ao que tudo indica a Inquisição via tudo e estava em todos sos lugares, tal qual Deus vigia seus fiéis a cada instante do dia.

Antes da Inquisição

  Inserido em um cenário de poder eclesiástico absoluto e soberano é que o Tribunal do Santo Ofício é instaurado em 1236 pelo papa Gregório IX, que temendo as ambições político-religiosas do imperador Frederico II, toma para si a responsabilidade de perseguir os hereges que começavam a incomodar o alicerce da Igreja católica , bem como a estrutura dos estados monárquicos de então, que tinham como um dos pontos de unificação de seu território a religião predominante da época.

Antes de se instaurar o Tribunal do Santo Ofício, propriamente dito, no início da idade média, a Igreja estruturou a sua justiça, limitando-se a uma justiça disciplinar. O seu procedimento era distinto da justiça comum da época, pois sua investigação era secreta e arrancar a confissão do réu constituía-se no âmago da questão. Esta justiça somente era aplicada ao clero. Entretanto, com o IV Concílio de Latrão, de 1216, através do papa Inocêncio III, firmou-se o metodo inquisitio .
Nasce, então, no seio da Igreja católica, o Sistema Processual Inquisitório, onde a autoridade responsável dispõe de poderes para, por sua iniciativa, abrir o processo, colher as provas que julgar necessárias e proceder secretamente no interesse em obter a confissão do réu.
É  esse sistema processual inquisitório que lançará as diretrizes e norteará todo o funcionamento da Inquisição, através de seus atos, mandos e desmandos em nome de Deus.

O Tribunal de Deus

Com o passar do tempo, a Inquisição desenvolveu um funcionamento próprio. Seus processos orientavam-se por um regimento interno onde estavam sistematizadas as leis, jurisprudência, ordens e praxes do tempo.
Para entender melhor a atuação deste tribunal julga-se necessário determinar como se instituía e se procedia a um julgamento neste tribunal desde a instalação do processo até a sua conclusão nos autos-de-fé, onde se queimavam os dissidentes da sociedade. É o que pretende-se fazer no decorrer deste estudo.
Para se instaurar um processo inquisitorial bastava uma denúncia ou uma acusação ao Santo Ofício. Depois da abertura do processo, seguia-se o desenvolvimento deste. Cabe lembrar que a Inquisição dava preferência para o processo de delação, que era anônimo, já que pelo processo de acusação se o réu fosse inocentado, o tribunal teria de aplicar a Lei de Talião. Isto não constituía um fato que agradasse o Santo Ofício, uma vez que se aplicaria esta lei ao acusador e não ao acusado, desestimulando a acusação e, consequentemente,  os crimes continuariam  impunes, para grande prejuízo do Estado.
Se por um lado a Inquisição demonstrava preocupação em não haver mais delatores, com o conseqüente prejuízo no estabelecimento dos processos e portanto no cumprimento de sua função social, por outro lado, como bem se sabe, quem caía nas mãos da Inquisição raramente saía vivo, e nas raras vezes que isto ocorria o réu deveria jurar que nunca mencionaria uma palavra sequer sobre o que ocorrera durante todo o processo. Portanto, esta preocupação com a falta de delatores é um tanto quanto teórica, pois tudo leva a crer que os resultados da ação inquisitorial eram bem óbvios para quem tinha a infelicidade de ser julgado pelo Tribunal do Santo Ofício.

A Defesa do Réu

Embora muitas vezes nem apareça a figura de um advogado nos vários processos inquisitoriais, o certo é que ele ocasionalmente estava presente. Entretanto, a sua presença, quando esta se fazia, era motivo de lentidão no processo e atraso na proclamação da sentença. Este advogado de defesa deveria ser designado pelo tribunal e deveria ser um advogado honesto, com experiência em direito civil e canônico, e bastante fervoroso na fé católica.
Pelo que se pode observar,   percebe-se que o advogado de defesa figurava mais como um empecilho, constituindo-se mais como um elemento decorativo, uma vez que quem o escolhia era o tribunal e não o réu. Sendo assim, na prática, ele era obrigado a “acusar”o réu e não a defendê-lo no tribunal, pois o papel do advogado era fazer o réu confessar logo e se arrepender, além de pedir a pena para o crime cometido. Na verdade o réu não tinha defesa e muito menos um advogado de defesa, já que este estava a favor da Inquisição e não do acusado, e de mais a mais sabe-se, pelos processos inquisitoriais que se tem notícia, que o processo de julgamento não chegava ao extremo de se designar um advogado para o réu confessar, pois esta confissão já era arrancada do réu nos interrogatórios  através da tortura.
Tormento
O uso da tortura para se obter uma confissão, foi permitido pelo papa Inocêncio IV, em 1252 e era aplicada sempre que se suspeitasse de uma confissão ou quando era incongruente. Um testemunho era suficiente para justificar o envio para a câmara de tormento. Quanto mais débil a evidência do crime, mas severa era a tortura.
Instituída para arrancar a confissão do réu, a tortura era um elemento sempre presente nos autos dos processos do Santo Ofício. Entretanto, a sua prática deveria ser moderada, pois o papel do inquisidor não era o de""carrasco". Além do mais o inquisidor deve ter sempre em mente esta frase do legislador: o acusado deve ser torturado de tal forma que saía saudável para ser libertado ou para ser executado.
Assim, pela citação acima percebe-se, claramente, que a intenção do Tribunal do Santo Ofício era conseguir a confissão do réu a qualquer preço, desde que esse preço não ultrapassasse o limite da morte pois, aos olhos da igreja somente a Deus é dado o direito de vida e de morte sobre qualquer ser vivo, pecador ou não, que habita a face da terra.
A festa da morte : o auto-de-fé
Terminada a sessão de tortura, seguia-se o julgamento do réu, a última etapa do processo, que antecedia o auto-de-fé. Os que eram condenados a penas leves – como cárcere e hábito penitencial perpétuo, bem como a flagelação – caminhavam com uma vela nas mãos.
Na frente do cortejo seguiam-se os condenados a  morte, entregues à justiça civil para serem queimados vivos. Eis um aspecto interessante. Por ser um tribunal eclesiástico o Santo Ofício não podia executar seus condenados, ou seja, aos olhos de Deus não era a igreja quem matava, pois a esta cabia apenas julgar, a decisão de fazer valer o julgamento cabia a justiça dos homens e estes é que teriam que se acertar com o Todo Poderoso se caso não fizessem valer a determinação do Santo Ofício.
 Havia também o caso daqueles que, condenados à morte se arrependiam e pediam para morrer em Cristo, era primeiramente estrangulado e depois atirado a fogueira , bem como aqueles que fugiam eram queimados em efígie, ou seja, simbolicamente, substituídos por um boneco de pano. Nem mesmo aqueles que morriam nos cárceres eram poupados, pois seus ossos eram entregues às chamas nos autos-de-fé. Assim, é inútil tentar fugir, tentar se esconder, pois, o julgamento da Inquisição não poupa ninguém, nem mesmo os mortos.
Havia dois tipos de autos-de-fé, os públicos e os privados. Estes se destinavam aos casos menos graves ou especiais (julgamentos de pessoas pertencentes à alta nobreza), aqueles eram enormes festas populares. Dispendiosos os autos públicos realizavam-se uma vez por ano. Construíam-se estradas, utilizava-se mobiliário, decorações, tinham longa duração, ou seja, duravam o dia todo e, às vezes, dependendo do número de réus estendiam-se até altas horas da noite, chegando mesmo até o dia seguinte. Com o passar do tempo, o caráter festivo e sua ostentação aumentaram e eram convidados reis, infantes, toda a corte para assistirem de camarote a execução e humilhação dos transgressores da sociedade.
Durante esta festa, os acusados ouviam suas sentenças e os condenados à morte, depois da cerimônia eram conduzidos ao queimador. Esta festividade iniciava-se com a procissão dos réus, seguida de uma missa, na qual o teor do sermão era a essência de toda a cerimônia. Não raras vezes eram, celebrados, juntamente com a matança, casamentos reais, razão pela qual os autos-de-fé eram comemorados com grande festa, pompa e requinte.
Seguia-se a partir daí a leitura das sentenças e a execução dos condenados a morte. Esta última parte era a mais esperada pelo povo, pois das aldeias mais distantes chegavam curiosos durante todo o dia. Apinhavam-se uns sobre os outros para ver melhor as roupas, toaletes, cabelos das condessas, das princesas, das nobres damas da corte. Depois de dadas as sentenças, o povo corria para a queimadeira, para ver como se salvavam as almas.
Em nome de Deus se julgava os hereges e se condenava à morte aqueles que ferozmente se opusesse a ordem vigente ditada pela igreja católica. Não pode-se esquecer que, em nome desse mesmo  Deus se perseguia e se condenava a morte muita gente que, pela sua posição econômica interessava aos cofres da igreja.
O cofre de Deus
Uma das penas mais graves, e que constituíam a base financeira da Inquisição era o confisco dos bens. Geralmente, os que eram condenados á morte é que possuíam seus bens confiscados, pois o tribunal tinha de se manter e as despesas gastas com os presos, com as tochas para acender as fogueiras e com o espetáculo promovido pelo auto-de-fé eram muito grandes, bem como a fé católica tinha que ser preservada a todo custo. Todavia, o confisco dos bens não é invenção do Santo Ofício e já existia no Direito Romano, de onde se propagou para a legislação de vários povos, sendo bem aceita e aplicada frequentemente.
Ao que diz respeito à igreja, proclamado, por esta, que o réu era culpado de heresia, daí podia-se seguir-se para o Estado, o direito ou até mesmo o dever de se asssenhorar dos seus bens. Quanto ao destino das posses dos condenados, isto variava de país para país.
Alguns achavam por bem se utilizar dos recursos angariados para manter a estrutura da Inquisição. Outros, no entanto, preferiam dividir os recursos conseguidos entre o Estado e a Inquisição. Neste serntido, fosse qual fosse a decisão do Estado sobre os bens dos condenados, o certo é que de alguma forma a igreja era benificiada com a perseguição aos infiéis.
Entretanto, no início da instauração deste tribunal, o seu funcionamento, no que diz rerspeito a este aspecto, não se dava da forma apresentada acima, pois pelo que o papa Inocêncio III decretou, em 1226 , a lei determinava que deviam ser destruídas as casas onde os hereges haviam trabalhado ou encontrado asilo (…). Essa pena logo entrou em declínio , suplantada pela confiscação de bens, que abrangia a casa do condenado.
Como se  pode ver houve uma evolução no que diz respeito ao aspecto da pena aplicada a quem era condenado à morte. Evolução esta, de certa forma necessária, se vista sob a ótica da época, pois com o crescimento do número dos hereges se acarretaria um prejuízo enorme para a Europa, uma vez que se a cada vez que se condenasse alguém à morte se queimasse a casa onde este trabalhou ou morou, restariam poucas em pé, ao final de cumprida a missão do Santo Ofício. Além do que para que destruir o que poderia ser usado em benefício das obras de Deus.
Mesmo porque, se no início da instauração do Tribunal do Santo Ofício os custos eram reduzidos, resumindo-se a cerimônias simples e esporádicas de autos-de-fé, com o passar do tempo a sustentação deste tribunal se tornou dispendiosa e passou a exigir maior atenção, pois devido a sua complexidade, que aos poucos a Inquisição denotava,  este tribunal começou a necessitar de estruturas, códigos e regulamentos próprios, onde se resumisse toda a ação do Santo Ofício, tanto que, em 1376, é escrito o Manual dos Inquisidores que moldará e direcionará o funcionamento da Inquisição, até a sua extinção em 1859.
Directorium Inquisitorum : o manual dos inquisidores
Quando o papa Gregório IX reinvidicou para si  a tarefa de perseguir hereges e institui, para isso, inquisidores papais, o que determinava o funcionamento do Tribunal do Santo Ofício era a bula Excommunicamus, que estipulava os procedimentos pelos quais inquisidores profissionais seriam enviados para localizar hereges e persuadí-los a se retratarem.
A bula foi publicada em 1232 e nos anos seguintes a tarefa de interrogar aqueles acusados de heresia foi confiada às ordens mendicantes, sobretudo os dominicanos. Talvez, por serem estes sseguidores dos ensinamentos de São Francisco de Assis, que pregava total desapego às coisas materiais, é que se pensava que seriam os mais indicados para proceder de forma precisa em um julgamento inquisitorial. Vã ironia, tendo em vista as atrocidades que se cometeram em nome de Deus e da fortuna para se manter  o combate as heresias.
Gregório IX aparece, com sua mão de ferro, no final de um longo período de lutas contra a heresia por parte da igreja institucionalizada. Vários decretos papais e conciliares haviam tentado regulamentar a heresia e impedir seu crescimento através da instituição de inquisições episcopais. Todavia, os esforços foram em vão e precisou-se, com o passar do tempo, fortalecer a Inquisição para que ela pudesse continuar em sua obra divina.
A partir do momento, que as heresias já não se curvam diante da presença da Inquisição somente eclesiástica, esta se une ao Estado, e a partir daí vai-se criando uma prática de controle severo das doutrinas, legitimadas por sucessivos documentos pontifícios, mas nada, havia ainda que resumisse toda a ação do Santo Ofício em uma única obra.
No início do século XIV, comportamentos dissidentes começaram a ameaçar a integridade da igreja católica, que acumulava, neste período, um poder jamais conseguido na história da humanidade, que incluía o poder sobre os Estados emergentes e sobre as consciências de uma sociedade teocrática.
Para salvar a estrutura inquisitorial, Nicolau Eymerich elabora, em 1376, o Directorum Inquisitorum (Diretório dos Inquisidores), um verdadeiro tratado sistemático dividido em três partes: a) o que é a fé cristã e seu enraizamento; b) a perversidade da heresia e dos hereges; c) a prática do ofício do inquisidor que importa perpetuar.
Trata-se, na verdade, de um manual de “como fazer”, extremamente prático e direto, baseado na documentação anterior e na própria prática inquisitorial do autor. Toda a obra se remete a textos bíblicos, pontifícios, conciliares que justificam e direcionam a prática e o “bom exercício”da Inquisição.
Devido ao surgimento de novas correntes heréticas, no século XVI, fazia-se urgente atualizar o manual de Eymerich. Foi quando o comissário geral da Inquisição Romana, Thoma Zobbio, em nome do senado da Inquisição Romana solicitou a outro dominicano, o canonista espanhol Francisco de la Peña complementar o manual de Eymerich com todos os textos, disposições, regulamentos e instruções aparecidas depois de sua morte, em 1399. Peña redigiu uma obra minunciosa, com nada mais nada menos que 744 páginas de texto com 240 outras de apêndices, publicada em 1585.
A importância de tal obra é tão grande para a época, que depois da Bíblia, foi um dos primeiros textos a serem impressos, em 1503, em Barcelona. E quando o Vaticano quis reanimar a Inquisição para fazer frente a Reforma Protestante, mandou reeditar o livro e distribuiu para todos os inquisidores do mundo europeu.

 Os Dominicanos de Deus

 Os autores do Manual dos Inquisidores pertenciam a ordem dos dominicanos , que pelo desapego aos bens materiais, através do exemplo de São Francisco de Assis, eram julgados os mais capacitados para assumirem cargos dentro do Tribunal do Santo Ofício.
Nicolau Eymerich nasceu em 1320 em Gerona, no reino da Catalunha e Aragão. Fez-se dominicano, com excelente formação jurídica e teológica. Em 1357 já é inquisidor-geral do reino, exercendo o cargo até 1392. No decorrer de seu exercício teve duas interrupções mais ou menos longas. Pelo excesso de zelo inquisitorial foi exilado dos territórios de Catalunha e Aragão. Mas foi compensado em 1371, com o convite para ser o capelão do papa Gregório IX, quando estava no exílio em Avinhão e depois em Roma. Escreveu o Manual dos Inquisidores, em 1376, tornando-o famoso. Morreu em Gerona em 1399.
Francisco de la Peña é o autor que complementou a obra de Eymerich, conseguindo fortalecer o “direito comum inquisitorial” como norma geral a ser seguida, o quanto possível, por todos os inquisidores em todas as partes que estivesse um olho de Deus, combatendo as heresias. Embora de la Peña seja de suma importância para a concretização do Manual dos Inquisidores, dele pouco se sabe ou se tem notícia dentro do contexto histórico da época.
O Manual dos Inquisidores se constitui em uma obra retilínea e severa, restringindo-se a atuação e o funcionamento do Santo Ofício. Por ser filha de seu tempo esta obra não é apenas um livro que conta como funcionava a Inquisição, mas através dele pode-se também  observar aspectos inerentes a sociedade da época. Não é a toa que ao final da obra o autor faz um inventário das 22 rubricas mais recorrentes que o inquisidor pode consultar rapidamente como se fosse um fichário. Afinal a Inquisição lidava com seres que estão propensos a reagir de diferentes formas conforme a situação em que se encontra e somente a Deus e seus representantes, cabe julgar as atitudes e ações contrárias a sua determinações, bem como estipular o valor da fiança a ser paga para a salvação de sua alma.
O confisco de bens e o Manual dos inquisidores
Dentre as questões referentes à prática do Santo Ofício, encontra-se a relativa ao confisco de bens praticado pela Inquisição. Tal prática se tornou cada vez mais recorrente, no decorrer do tempo, principalmente a partir do século XV, entretanto já havia diretrzes que permaneceram, mesmo depois da  revisão de la Peña, de como proceder na confiscação de bens. Segundo o Manual dos Inquisidores quem se arrepende antes da sentença que o levou a ser entregue ao braço secular  fica com os seus bens. Ao contrário, confiscam-se, ipso uire, os bens de quem só se arrepender depois da sentença de condenação. Os bens destes últimos tornam-se propriedade das autioridades civis, a menos que, por generosidade, estas não o queriam.
Pelo exposto acima, a Inquisição, pelo menos teoricamente, se preocupava com a salvação da alma de seu réu, pois se este se arrependesse antes da sua sentença de morte, estaria salvo e teria recuperado todos os seus bens. A bem da verdade, talvez isto tenha sido usado em princípios de seu funcionamento, ficando relegado a um segundo plano no decorrer do processo.
Mesmo porque o réu não conhecia as leis que o regia, pois raramente sabia ler e quando sabia teria de se contentar com obras que a igreja determinava fora de perigo de perverter seus fiéis. Além do que, somente os inquisidores tinham acesso às leis que regiam a instituição, assim, acredita-se, que mesmo o réu se arrependendo antes de sua sentença de morte, ele raramente recuperava seus bens, pois se argumentaria que estes se destinariam a manutenção do tribunal santo.
Além do mais o próprio manual discute a questão do arrependimento e sua relação com o confisco de bens. Segundo de la Peña , o revisor do Manual dos Inquisidores, a Inquisição deveria ser mais severa com seus infiéis e independente de o herege se arrepender ou não, se o faz antes ou depois da sentença, perde os seus bens (…). Dicscordo totalmente de Eymerich quando defende que se deve devolver os bens dos hereges que se arrepende, depois de ter sido entregue ao braço secular. O que! Um homem desses, culpado de uma tal infâmia, ganharia duas graças – a vida e a posse de seus bens? Um herege desses seria indigno de tanta bondade.
Pelo que se vê, tudo leva a crer que realmente a primeira determinação do manual fica apenas no plano teórico, uma vez que o própria lei que o regia é colocada em dúvida quando o Directorum é revisado, a partir daí se abre uma brecha para que a atuação do Santo Ofício não se limite a apenas conseguir o arrependimento do réu, mas também fundos para que não se morra os olhos e os ouvidos de Deus da face da Terra. Fica bem claro, ao analisar o presente manual, que este se divide em dois momentos distintos, ou seja, quando é escrito, em 1376, e quando é revisado, em 1578. E neste sentido deve-se ter um cuidado redobrado ao analisar a questão do confisco de bens aos olhos da Inquisição. Cabe lembrar ainda, que a Inquisição que se instala na idade média pretendia, tão somente, perseguir aqueles que iam contra a fé católica. A idéia e ambição dos primórdios da Inquisição era manter viva a fé católica, desprovida de qualquer benefício econômico que estes julgamentos pudessem acarretar à igreja. Pois, como bem pôde-se observar anteriormente, o papa Inocêncio III havia determinado que a pena para os hereges seria a destruição de sua casa, de forma que o herege não pudesse deixar nenhum rastro de seu ato tão desprezível aos olhos de Deus e da igreja.
Quando o manual é revisado a europa já se encontra no século XVI, os interesses da Inquisição, neste momento, são outros. O seu ideal de manter a fé católica e fazer com que o penitente se arrependa e possa retornar ao convívio dos seus, em paz, é suplantado pelo interesse político e social. Pois, a europa vive o anseio das grandes descobertas, o capitalismo começa a dar seus primeiros passos e o dinheiro passa a ser o maior interesse dos países europeus, principalmente ibéricos, onde a santa Inquisição atuou com rigores inconcebíveis.
Em nome de um Deus que preferia o dinheiro e a morte nos queimadouros dos autos-de-fé do que a salvação da vida humana, a santa Inquisição ibérica, sobretudo a espanhola, matou, torturou e ousou ir contra os próprios ensinamentos de Cristo que diz: afasta-te de causas mentirosas. Não mates o inocente e o justo, porque não vou absorver o culpado.
Assim, vale dizer que, embora a Inquisição entregasse o réu ao poder civil, para que se cumprisse a sentença de morte, quem a determinava era o Tribunal do Santo Ofício, desta forma quem matava o réu, mesmo que indiretamente era a Inquisição.
O Tribunal de Deus fez muitas vítimas, mas não tantas quanto a partir do século XVI, período este de ascensão econômica e nascimento do capitalismo, onde a igreja católica viu sua liderança  começar a ser ameaçada, devido as correntes protestantes e onde, o que é pior, para se manter no equilíbrio a igreja se utilizou de seu poder para que a estrutura sagrada da santa Inquisição não morresse e pudesse continuar combatendo as heresias e enchendo os cofres de Deus de dinheiro e de bens, às custas do sangue daqueles que interessavam, pelo seu poder econômico,  a santa madre igreja.
Em Nome do Poder
O mais longo dos caminhos  é o que leva ao bolso.    Em terras lusitanas o Tribunal do Santo Ofício se instaura em 1536, e até então, judeus mouros, cristãos-novos  e cristãos toleravam suas crenças, viviam relativamente bem se comparado com outros países europeus , pois como afirma Ortiz, judeus, cristãos e mulçumanos viviam em uma simbiose que a todos beneficiava, baseada, em grande parte em uma divisão de trabalho e das funções sociais. A comum lealddade ao soberano mantinha entre estes grupos um embrião de unidade política.
Neste sentido pode-se dizer que, diferentemente dos outros países europeus, Portugal pouco se importou com as diferenças religiosas ou étnicas de sua população, o que trazia um clima de certa cordialidade. Mesmo porque estes grupos traziam a Portugal o equilíbrio econômico que ele tanto precisava durante os tempos medievais.
Quanto a igreja, propriamente dita, esta preocupou-se, durante todo o período medieval, em impedir o convívio dos judeus, mouros e cristãos, sob alegação de influência perigosa para a fé cristã. Entretanto, em Portugal, a preocupação cristã se fundamentava na heresia e não no grupo em si, pois desde que os grupos que professsassem uma fé adversa a fé cristã não intervissem no equilíbrio da ordem vigente, não haveria problema algum.
Todavia, para se evitar abusos, ainda no século XII, D. Afonso Henriques outorgou aos mouros forros uma carta de fidelidade (vale dizer, de amizade) e segurança. Nela se lhes assegurava a liberdade, era garantido que nenhum dano sofreriam e que a nenhum cristão seria reconhecido o direito de os maltratar.
Ao que tudo indica, enquanto os demais países europeus se preocupavam em perseguir os grupos dissidentes da sociedade, Portugal concentrou suas forças em proteger e resguardar estes grupos, pois sua presença muito importava, economicamente, ao governo lusitano e de mais a mais, protegido atrás da Espanha, Portugal permanecia imune a reais movimentos heréticos.
Assim, enquanto no restante da europa mouros e judeus eram perseguidos, humilhados e queimados em autos-de-fé, perdendo seus bens em detrimento da igreja; em território lusitano estes grupos possuíam guarida, paz e, é claro, liberdade para fazer suas fortunas crescerem pois, como bem se sabe, o que mais atraía estes grupos para as garras da Inquisição  não era a heresia em si, mas as ricas moedas de ouro e prata que tanto judeus quanto mulçumanos eram peritos em ganhar e fazer multiplicar a olhos vistos.
Além da proteção aos mouros, Portugal assegurou durante muito tempo abrigo e liberdade de expressão aos judeus, que também se constituía em um povo herético para a Inquisição. Procurava-se, sobretudo, evitar os maus-tratos contra os judeus e para tal, as Ordenações Afonsinas ( que consolidaram o direito preexistente e que, após longa preparação, foram promulgadas por D. Afonso V em 1446) contiveram várias dessas medidas protetoras. No seu livro II, título 94, acha-se transcrita uma lei de 1392 que cominava pena de excomunhão para o cristão que praticasse determinados atos contra os judeus, por exemplo, constrangendo-os ao batismo ou perturbando-lhes suas festas com armas, pedras, etc.
No entanto, o descontentamento e a revolta da população contra a minoria hebraica começou a crescer. Instigada pelo preconceito e pelos boatos de que judeus profanavam hóstias sagradas e praticavam ritos que ofendiam a fé cristã, a população, que até o presente momento tolerava a presença deste povo, deu início a um movimento de segregação e ódio contra o povo hebreu.
E como se não bastasse o clima tulmutuado, que começa a habitar Portugal, judeus fugidos da Inquisição espanhola vem encontrar abrigo em solo lusitano a partir de 1492, ano este em que é lançado na Espanha o édito de expulsão dos judeus  determinando que todos os judeus que vivem em nosso reino, sem distinção de idade ou sexo, devem deixar nossas terras o mais tardar no fim do mês de julho do ano em curso, juntamente com seus filhos, filhas e domésticos judeus; e proibimos que voltem a se estabelecer no nosso país, que o atravesse ou nele penetrem por qualquer motivo. Os contraventores desta ordem serão condenados sumariamente à pena de morte e ao confisco de bens.
Sem saída, os judeus espanhóis rumaram para oeste, de modo que todos os caminhos que levavam a Portugal se viram cobertos por uma legião de refugiados. Devido a este fato a situação interna de Portugal se complicou e o governo se viu em um beco sem saída. Se por um lado ele precisava da ajuda judaica para a consolidação de um império colonial; por outro lado o ódio e a revolta do povo contra a população hebréia começava a se tornar insustentável, pois o tempo de tolerância havia acabado e a situação dava indícios de que algo deveria ser feito para conter a fúria do povo e o governo não perder sua fonte de renda.
Em 1495, D. Manuel I assume o trono lusitano com planos politicamente ambiciosos. Pretende, ele, casar-se, com a princesa Isabel, filha primogênita dos reis católicos , objetivando com isso unir os dois reinos da península. A proposta interessou o reino espanhol, mas ao contrato nupcial anexou-se uma claúsula que obrigava ao soberano português expulsar todos os judeus que havia encontrado abrigo e asilo em solo lusitano.
Pressionado pela Espanha, pelo clero e pela opinião pública portuguesa, D. Manuel promulga o édito de expulsão, no qual estabelece que dentro do prazo de dez meses, todos os judeus não convertidos deveriam retirar-se do país. Esta medida, no entanto, não se fez valer e passado o prazo determinado, D. Manuel não hesitou e ordenou que todos os judeus fossem batizados pela força. Nascia assim, oficialmente, os chamados cristãos-novos, principal alvo de perseguição do Tribunal do Santo Ofício em Portugal.
Assim, os acontecimentos trilhavam, por si só, o caminho para o estabelecimento da Inquisição em Portugal, que conciliou os interesses econômicos e religiosos daquele reino, pois com a sua atuação se conteve a fúria do povo contra os grupos dissidentes da sociedade, que pôde se deleitar com o espetáculo da salvação das almas dos infiéis, e  encheu os cofres do Estado, que proporcionou a manutenção política e econômica da supremacia no empreendimento colonial.
As negociações entre a Coroa portuguesa e a Cúria romana, que procederam  o estabelecimento da Inquisição em Portugal, duraram mais de trinta anos. Durante este período, o dinheiro oferecido pelos cristãos-novos contrabalanceava as ofertas da Coroa portuguesa, oscilando em função disso a decisão do papado.
Por volta de 1530, o Estado português, começa a sofrer uma grave crise econômica. O governo de D. João III  empenhou-se em luta com a Santa Sé, disputando a distribuição das rendas da igreja e a supremacia dos negócios eclesiásticos do reino.
Ainda em 1525, no primeiro pedido para o estabelecimento do Santo Ofício em Portugal, D.João III remete a Roma sua pretenção e nela pretendia-se apenas julgar os acusados de heresia, ainda sem a violação do segredo das testemunhas e o confisco de bens. Mas a corte romana defendia então uma política generosa em relação aos cristãos-novos, não apenas porque os ideais do Renascimento se inspiravam num clima de paz cristã, como ainda por reconhecer a dinâmica da gente mosaica na formação dos Estados modernos.  Pelo que se vê o jogo de interesses é maior do que cumprir os mandamentos de Deus e combater os infiéis aos olhos da igreja.
A Inquisição em terras lusitanas
As negociações continuam até que a Inquisição se estabelece em território lusitano, pela bula de 23 de maio de 1536, que nomeia três inquisidores, os bispos de Lamego, Coimbra e Ceuta. Os termos da bula são benevolentes, reservando aos bispos o direito sobre as coisas da fé e concedendo aos acusados o direito de defesa, bem como proibindo a confiscação de seus bens durante, pelo menos dez anos, pois bem sabia o papa do exemplo da Inquisição espanhola, onde os mais vigiados e acusados eram os comerciantes de sangue judeu .
É evidente que tais disposições seguiam os rigores da Inquisição medieval e era orientada pelo Manual dos Inquisidores. Assim, quando a bula menciona a defesa do réu esta deve se proceder da maneira habitual, com um advogado escolhido pela Inquisição, que deveria agilizar o processo e fazer com que o réu se arrependesse logo .
Além disso, a Inquisição portuguesa é instituída em pleno século XVI, quando a economia capitalista começa florescer e os interesses clericais começam a girar em torno de outros objetivos, do que meramente perseguir hereges e combater heresias.
O primeiro auto-de-fé realizou-se em Lisboa, a 20 de setembro de 1540, seguindo-se outros em Coimbra, Porto, Lamego, Tomar e Évora. Devido a contínuos desentendimentos, o papa mandou suspender a atividade do Tribunal do Santo Ofício em 1544.
O governo português inconformado, propõe negociações e mais negociações até que o papa, diante de uma proposta irrecusável que trazia incomparáveis  vantagens econômicas, percebeu a urgência e a necessidade de se combater as heresias e propagar a fé cristã em terras portuguesas e pela bula meditatio cordis, de 16 de julho de 1547, revigora-se a fé católica restabelecendo a Inquisição neste país.
A partir de então a Inquisição portuguesa presencia momentos de extrema eficiência, mas com requintes de crueldade, como os anos em que foi inquisidor-mor D. Henrique, irmão de D. João III, onde ocorreu o corte de toda apelação dos cristãos-novos a Roma e a concentração numa mesma pessoa, rei e inquisidor, a suprema autoridade política e a suprema autoridade religiosa. Assim o Tribunal do Santo Ofício assume o centro de poder do Estado português, mandando e desmandando da forma que lhe conviesse as dissidências da igreja católica.
Mas nem tudo se procedue de forma tranqüila e a Inquisição lusitana encontrou oposição no seio da própria igreja, na figura do padre Antonio Vieira, que tentou de todas as formas impedir a ação do Santo Ofício, tanto que chegou a ir á Roma para denunciar ao papa Clemente IX os métodos e as injustiças da Inquisição portuguesa.
Seu brilhantismo foi tal que em 1674, o papa suspende as atividades do Santo Ofício, mas por pouco tempo pois os hereges portugueses tinham de ser perseguidos e em 1681, o Tribunal de Deus volta as suas atividades normais.
Ao se instaurar a Inquisição em Portugal, algo mudou nesta sociedade. Os povos que viviam relativamente bem foram hostilizados uns contra os outros, e quem saiu perdendo foi o cristão-novo, pois além de assumir perante a igreja, a figura de um grupo perigoso, ele também possuía as riquezas que a igreja tanto precisava para empreender as obras de Deus.
A ação do Santo Ofício português atingiu de forma, quase direta, o povo judeu. Entretanto não se deve esquecer que vários outros grupos e dissidências fizeram parte da lista maldita da Inquisição, porém a ação sobre estes grupos se fazia de forma mais branda e amena para não despertar a crença de que a Inquisição fora instalada para angariar recursos

Os Hereges

Aqueles que iam contra  a santa madre igreja católica eram denominados, por esta, como hereges. Estes eram o alvo principal do Santo Ofício, que o Manual dos Inquisidores classificava como: a) os excomungados; b) os simoníacos (comercialização dos bens da igreja); c) quem se opusesse à igreja de Roma e contestasse a autoridade que ela recebeu de Deus; d) quem cometesse erros na interpretação das Sagradas Escrituras; e) quem criasse uma nova seita ou aderisse a uma seita já existente; f) quem não aceitasse a doutrina romana no que se refere aos sacramentos; g) quem tivesse opinião diferente da igreja de Roma sobre um ou vários artigos de fé; h) quem duvidasse da fé cristã.
 Instituído sob o caráter religioso, este tribunal regulava e controlava toda a vida quotidiana dos pensamentos dos cidiadãos, atuando como um tribunal eclesiástico. Com o passar do tempo esta instituição assumiu uma importância extraordinária, no seio de diversas sociedades européias, tanto que não raras vezes, a Inquisição julgou processos comuns, que não diziam respeito a ordem divina, acusando os réus de hereges e submetendo-os aos rigores de suas determinações.
No decorrer dos séculos, vários concílios se realizaram para alterar a lista dos pecados e incluir, de acordo com os interesses da ordem vigente, mais crimes que ofenderiam a fé cristã.
Quando a Inquisição se instala em Portugal, através da bula de 23 de maio de 1536, nela determinava-se quem são os hereges, além dos mencionados no manual dos inquisidores, a serem perseguidos, com maior ênfase, em solo lusitano.
Meses depois, porém, de sua instauração a Inquisição portuguesa lança um édito de explicação em que deviam ficar todos sabendo bem de que culpas se tinham de confessar e quais as que deviam denunciar.  Assim estabelecia-se a quem deveria recair os rigores da Inquisição em solo lusitano.
Perante a Inquisição portuguesa deveriam ser denunciados todos aqueles que praticassem ritos judaicos ou mahometanos; bem como perseguir-se todo aquele que, em terras portuguesas, disssesse coisas que diziam respeito a fé luterana. Entretanto não há de se negar que quem mais sofreu com a presença da Santa Inquisição, em solo português, foi o judeu, cristão-novo, o principal elemento visado pelo tribunal.
O judeu, que fora obrigado a se batizar na fé católica, em 1497; convertido passou a ser alvo das perseguições do Santo Ofício, pois devido a imposição da religião católica a este povo, este se viu obrigado a praticar sua crença escondido, longe dos olhos de curiosos que pudessem prejudicar o bom andamento de suas crenças judaicas e os delatar ao Santo Ofício.
Estes judeus conversos eram chamados de hereges judaizantes, e esta denominação era utilizada em todas as sentenças e documentos oficiais da Inquisição, significando os portugueses descendentes de judeus que foram forçados ao batismo em 1497, durante o reinado de D. Manuel I, e que obstinada e secretamente seguiam a religião judaica (…). É pois o português batizado, descendente dos judeus convertidos ao catolicismo e praticante secreto do judaísmo, um herege perante a igreja católica portuguesa.
As garras da Inquisição portuguesa atingiu a muitos, mas em maior escala  aplicou seus rigores sobre os cristãos-novos, donos de dois pecados mortais para a igreja católica: professar a fé de Moisés e praticar a usura, que pelo concílio de Paris, de 1213, é colocado como um pecado tão grave quanto a heresia. Além do que a igreja se constitui em um órgão que necessita se manter e viu no surgimento desta prática uma maneira  eficiente de salvar as almas destes infiéis, ladrões do tempo do Senhor Deus, e garantir a sobrevivência da Inquisição
O Pecado: a Usura
O Concílio de Viena de 1331 autorizou os tribunais da Inquisição a perseguir os cristãos que praticassem a usura. Note que a determinação não menciona se são cristãos novos ou velhos, abrangendo a todos que professem, forçosamente ou não, a fé católica. Com isso a igreja conseguiu livre arbítrio para setenciar á morte um usurário e ainda ficar com seus bens em troca da salvação de sua alma.
A palavra usura, em seu sentido atual, significa a cobrança de juros exorbitantes. Mas, no tempo medieval e mesmo no século XV, chamava-se usura a cobrança de juros de qualquer espécie ou como define Le Goff, a usura é um valor imposto  sobre o poder aquisitivo, sem relação com a produção, freqüentemente mesmo sem relação com as possibilidades de produção.
A igreja condenava o usurário porque ele ganhava sobre um tempo que não lhe pertencia, o fruto de seu dinheiro não vinha de um trabalho suado, pois o seu ganho pressupõe uma hipoteca sobre um tempo que só a Deus pertence.
Os maiores usurários desta época eram os judeus e sobre eles é que recai, sob a figura do cristão-novo, a maior atuação do Tribunal do Santo Ofício, pois impossibilitados de exercer qualquer atividade nas guildas , este grupo procurou alternativas para sobreviver e a que lhe sobrou foi a de comercializar, o que muito bem sabia fazer, fornecendo empréstimos e cobrando juros sobre o dinheiro negociado, conforme o tempo que o negociante esperava para receber.
Entretanto, embora os judeus fossem os maiores representantes desta classe, os cristãos também praticavam a usura, fraudando de inúmeras maneiras a sua proibição. O fato é que muitos cristãos praticavam este pecado, trazendo para os adeptos de Cristo uma preocupação cada vez maior com os lucros e a concorrência que os judeus representavam.
Através da ordenança de Melum,de 1220 os judeus foram relegados à baixa usura, ou seja, só poderiam emprestar sob penhor, isto é, aos camponeses, aos artesãos ou à plebe.  Assim, parece, que desde o princípio da prática da usura, o que era vinculado as heresias determinadas pelo Santo Ofício era um jogo de interesses, que reinava e se procedia conforme interessava para o equilíbrio da sociedade cristã.
O que se percebe é que havia uma preocupação, por parte da igreja católica, em colocar os negócios do povo hebreu em uma escala inferior em detrimento da ação dos usurários cristãos. No entanto, por mais que a igreja e a política vigente se esforçasse para conter a ação judaica, nada a impedia, tanto que, na França, no século XIII, Felipe, o Belo, expulsa os judeus de seu território, deixando, lamentações, por parte de quem se viu obrigado a negociar com os usurários cristãos. Tal tristeza é expressa em um poema, que se lamenta dizendo:
Toda gente pobre se queixa
Pois os judeus foram muito mais bondosos

Ao fazer seus negócios
Do que o são agora os cristãos
Pedem garantias e vínculos
Pedem penhores e tudo estorquem
A todos despojando e esfolando…
Mas se os judeus

Permanecessem no reino da França,

Os cristãos teriam tido

Muito grande ajuda, que agora
Não tem mais. (século XIII)
O que se lamenta, na verdade, é a presença de um negociante mais modesto, bemo como uma ajuda maior pois ao que tudo leva a crer é que com a expulsão dos judeus do território francês, até mesmo os cristãos usurários se viram coagidos, haja vista a perseguição, sempre presente, do Santo Ofício.
Em Portugal, a usura foi apenas mais um pretexto para que se perseguisse o judeu, que juntamente com suas práticas heréticas judaizantes, se tornavam alvo fácil para quem só queria enriquecer através da legitimidade de um órgão da igreja.
O Santo Ofício português começa atuar em um período propício, economicamente falando, para o restante do mundo europeu, pois o espírito capitalista começa dar seus primeiros passos e onde o comerciante tem influência, (…), a economia progride, a agricultura se desenvolve, as cidades se estruturam.
É neste momento, também que a economia na europa começa a girar e as rodas da fortuna começam a aparecer, através de lucros advindos, para a igreja católica, de maneira ilícita, pois o usurário ganha dinheiro sobre um tempo que só a Deus pertence, pois o tempo é um dom de Deus e não pode por isso, ser vendido , mas os tempos são outros e o tempo que a Idade Média opôs ao mercador é levantado no início do Renascimento. O tempo, que só pertencia a Deus, é agora propriedade do homem.
Nesta dinâmica de desenvolvimeto europeu é que Portugal instaura a Inquisição em seu território e funda seu império colonial além-mar. Mesmo que, a Inquisição tivesse se estabelecido neste território, sob a claúsula de que não se confiscasse bens de condenados, durante pelo menos dez anos. O certo é que os abusos foram cometidos e em nome do progresso que se instalava e propagava no restante da europa, Portugal viu na Inquisição e na prática do confisco de bens, a oportunidade para que o sonho dourado  de estabilidade política e econômica se concretizasse através da salvação das almas.
Assim, além de utilizar seu poder para fazer crescer e avolumar o cofre de Deus, em troca da salvação das almas dos infiéis, o Santo Ofício infrigiu o maior dos mandamentos da lei de Deus: Não Matarás.  E, embora, pela mentalidade medieval e inquisitorial, não fosse a igreja que executasse a sentença, mas sim o Estado. O fato é que era a igreja que julgava, torturava e, indiretamente, matava em nome de Deus, do Poder e da Política.

Bibliografia
ATTALI, Jacques. 1492 : os acontecimentos que marcaram o início da era moderna.  Rio de Janeiro: Nova  Fronteira, 1992.
BAIÃO, Antônio. A Inquisição. In: PERES, Damião (dir.).História de Portugal. Barcelos:  Portucalense, vol. III, 1931.
BÍBLIA. A.T. Êxodo. Português. Bíblia Sagrada  Trad. Pe. Matos Soares. São Paulo : Edições Paulinas, 1980.
BÍBLIA. N.T. Mateus. Português. Bíblia Sagrada  Trad. Pe. Matos Soares. São Paulo : Edições Paulinas, 1980.
BONDER, Nilton. A Cabala do Dinheiro. Rio de Janeiro : Imago, 1991.
BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais. Lisboa:  Presença, 1986.
CARMO, Sonia Irene do. História: passado, presente. São  Paulo: atual, 1994.
EMERICH, Nicolau; LA PEÑA, Francisco de. Manual dos  Inquisidores. Rio de Janeiro : Rosa dos Tempos, 1993.
ENCICLOPÉDIA Mirador Internacional. São Paulo : Melhoramentos, 1980.
FRANCO, Silvia Cintra; SANTANA, Sergio Reinhardt. A  Inquisição Ibérica. São Paulo: ática, 1995.
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu Mundo.  São Paulo: Saraiva, 1994.
LE GOFF, Jacques. A Bolsa e a Vida.  São Paulo: brasiliense, 1986.
LE GOFF, Jacques. Na Idade Média: tempo da igreja e tempo do mercador. In: LE GOFF, Jacques. Para um  Novo  conceito de Idade Média : tempo, trabalho e cultura no  ocidente. Lisboa: estampa, 1980.
LIPINER, Elias. Santa Inquisição: terror e linguagem.  Rio de  Janeiro: Documentário, 1977.
LOYN, H. R. (Org.). Dicionário da Idade Média.  Rio de  Janeiro: Zahar, 1989.
NOVINSKY, Anita. A Inquisição. São Paulo: brasiliense, 1993.
NOVINSKY, Anita. A Inquisição: uma revisão histórica. In: NOVINSKY, Anita (org.); CARNEIRO, Maria Luiza  Tucci (org.). Inquisição: ensaios sobre mentalidades, heresias e arte. São  Paulo: EDUSP, 1992.
ORTIZ, D. Los Judeos Conversos en España y América. Madrid: Ed. Istmo. Collección Fundamentos 11, 1971.
POLIAKOV, León. De Cristo aos Judeus da Corte.  São  Paulo: Perspectiva, 1955.
RUBERT, Arlindo. Historia de la Iglesia en Brasil.  Madrid :  Mapfre, 1992.
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. Lisboa : Verbo, 1980.
WIESENTHAL, Simon. A Missão Secreta de Cristóvão  Colombo. Rio de Janeiro: civilização brasileira, 1995.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.