segunda-feira, 2 de julho de 2012

A ESCRAVIDÃO E A CAFEICULTURA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX PELAS CARTAS DE INA VON BINZER

INTRODUÇÃO[1]

O século XIX pode ser considerado o período de “redescobrimento” do Brasil pelos europeus, principalmente pelas viagens de estrangeiros e das expedições cientificas que desembarcaram por aqui objetivando a catalogação da fauna e da flora nativa que ainda se encontrava intocada. Até o inicio do século XIX, o exclusivismo português resguardou o Brasil de “olhos estranhos”. A vinda da família real portuguesa e a transferência da administração, e conseqüente abertura dos portos, facilitou a entrada de estrangeiros e a organização destas expedições científicas pelo país.
O interesse pela Ciência motivou os viajantes a conhecer e a pesquisar países e culturas diferentes. A Ciência aparece como uma lente para ver o Novo Mundo. Neste sentido, naturalistas imbuídos deste espírito, seguiram também os passos que Humboldt instituíra como modelo para o relato descritivo de viagem.
Estes relatos de viagem trazem importantes informações a respeito do coditiano: alimentação, vestuário, relações familiares, etc. tornando-se frentes as tradicionais fontes históricas peças essenciais de um grande quebra-cabeça, onde estas últimas privilegiam assuntos da esfera econômica, diplomática e política.
Sendo os relatos dos viajantes um ponto de vista de alguém que vem de fora, ele é freqüentemente mais atento e questionador. Observando aspectos da realidade que passam despercebidos aos habitantes locais, para os quais tudo parece normal. O estrangeiro compara a realidade que encontrou com a de seu país de origem, vendo os diversos aspectos que permeiam o cotidiano social, político, econômico e religioso numa perspectiva diferente do habitante local. Apesar de na quase totalidade das vezes este olhar ter presente consigo aspectos etnocêntricos, contribui num cruzamento de informações de diversas fontes para ampliar o campo do conhecimento histórico a cerca de diversas temáticas.

A ESCRAVIDÃO E A CAFEICULTURA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX PELAS CARTAS DE INA VON BINZER

O presente trabalho abordará a questão da escravidão e da economia cafeeira no Brasil do século XIX, particularmente no final deste século, a partir do olhar estrangeiro contido nas correspondências que a educadora alemã Ina von Binzer enviou a uma amiga na Alemanha, reunidas no livro “Meus Romanos: alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil”.
Uma mulher relatando suas impressões é quase que uma raridade entre os viajantes do século XIX, uma vez que em sua maioria eram homens.  O papel que era dado às mulheres no século XIX em raros casos permitia realizar viagens como Ina von Binzer realizou. Quando viajavam era com a família ou marido em missão diplomática ou militar. No entanto, havia aquelas que se aventuravam a quebrar padrões sociais. Estas mulheres viajavam sozinhas pelo prazer de viajar ou tentar a sorte em outro país como no caso de Ina, que veio ao Brasil para exercer a função de professora.
Ina von Binzer nasceu na Prússia, próximo à cidade Hamburgo, após percorrer em sua infância várias cidades alemãs devido à profissão do pai (administrador florestal), tornou-se professor num colégio interno. Com a morte da mãe, Ina teve que assumir o seu papel na família. Provavelmente na busca pelo exercício da profissão e ganhos melhores, veio ao Brasil, onde desembarcou com cerca de 22 anos de idade no Rio de Janeiro em 1881 para trabalhar como educadora dos filhos de um fazendeiro, possivelmente atraída pela oferta de um bom salário. Sua viagem pelo sudeste brasileiro acabou em 1883, quando retornou a Alemanha e tornou-se escritora.
Em suas andanças pelo sudeste do Brasil na década de 1880, Ina acabou percorrendo regiões que do ponto de vista econômico, estavam entre as mais importantes para o Brasil da época: o Vale do Paraíba, o interior do Oeste Paulista e as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. A partir disso é que os escritos de Ina têm especial importância para estudarmos as características que diferenciavam e os elementos do cotidiano que compunham a economia brasileira naquele momento da história.
A educadora alemã iniciou sua aventura pedagógica pelo interior do Rio de Janeiro, onde numa fazenda do Vale do Paraíba foi contratada para lecionar aos filhos do fazendeiro. Era comum na época, onde não havia escolas públicas que pudessem atender a todos e, além disso, as distâncias e as condições de transporte não permitiam tal deslocamento, professoras serem contratadas para trabalhar nas fazendas, pois normalmente eram famílias numerosas a dos fazendeiros.
Ina numa de suas primeiras cartas ficou espantada por não encontrar nenhum animal selvagem ou algo fantástico como ouvira sobre ao Brasil na Europa, como ela mesma comenta a sua amiga Grete:

Não é nada extraordinário que esta fazenda se chama S. Francisco; seria, ao contrario, fora do comum, se tivesse outro nome. (...).
A segunda desilusão vai ser para vocês minha viagem do Rio de Janeiro até cá: não lhes poderei contar nenhum assalto dos indígenas e nem mesmo uma luta contra os tigres, quando no mínimo vocês esperavam uma descrição da cobras gigantes. (Binzer, 1980, p.17).

É notória a desilusão da viajante com as representações que foram ao longo do tempo construídas a cerca do Brasil na Europa a partir dos relatos dos viajantes, em especial os naturalistas, que se preocuparam em descrever minuciosamente a natureza brasileira.
No entanto, o que mais nos chama atenção nos relatos de Ina são a questão da escravidão e as diferenças econômicas que ela percebe nos inúmeros lugares onde é contratada.
Sua chegada ao Vale do Paraíba em 1881, consiste com o período de decadência da região quanto à cultura do café. Os chamados Barões do Café mantinham somente o status da época áurea do café na região. Ina aponta numa carta suas impressões sobre as propriedades da região a partir da descrição da fazenda onde está estabelecida:

A plantação mede três milhas quadradas, mas o modo de exploração é bastante original. A maior parte da terra não é cultivada; quando é necessário aproveita-la, queima-se então o que ali crescia, sendo às vezes atingidas sem piedade as mais lindas matas virgens, cujas cinzas e troncos apodrecidos servem como o melhor dos adubos. (Binzer, 1980, p.30).

O testemunho de Ina nos leva a concluir que o manejo dos cafezais era bastante primitivo, com utilização do fogo, o que muitas vezes levava a destruição da flora nativa. Técnicas como estas já haviam sido abandonadas na Europa, pois resultava na degradação dos solos, declinando a sua produtividade. Talvez ai Ina tenha apontado um dos fatores da decadência do Vale do Paraíba: o esgotamento do solo e a impossibilidade de expansão das lavouras.
Outro aspecto que esta muito presente nos relatos de Ina é a questão da mão-de-obra utilizada nas fazendas. Neste caso podemos comparar dois trechos de suas cartas onde é possível notar explicitamente as diferenças entre as propriedades do vale do Paraíba e as do interior Paulista:

(...) Quando atravessamos a plantação, os pretos estavam trabalhando, porque o domingo para os escravos desta fazenda cai na quarta-feira. A lei exige um feriado por semana para eles, mas deixa ao patrão o direito de escolher o dia que melhor lhe convenha, de maneira a não coincidir com o feriado da fazenda vizinha, evitando assim as relações dos pretos entre si.
         Foi muito pitoresco apreciar aquelas figuras negras de blusas claras, colhendo o café e enchendo rapidamente as cestas entre os arbustos escuros, mas reluzentes. Os pretos aqui são muito bem tratados e aqueles que colhem mais do que uma determinada quantidade de cestas recebem uma gratificação. (...) (Binzer, 1980, p. 30).

Com certeza a escravidão sempre chamou atenção dos estrangeiros, mas particularmente Ina ficou impressionada com a vida e o trabalho dos escravos nas fazendas brasileiras. No trecho acima, ela nos descreve brevemente o cotidiano dos cativos numa fazenda do Vale do Paraíba, que fazia uso intensivo da mão-de-obra escrava. Este fato é diferenciado por uma outra descrição de uma fazendo do interior de São Paulo onde ela escreve:

(...) Nesta plantação os escravos são raros, porque o Sr. de Sousa e D. Maria Luísa são contrários ao cativeiro.
Possuem alguns pretos apenas para o serviço doméstico, e o trabalho de fora é feito por homens livres. (...) (Binzer, 1980, p. 100).

                       Além de muitos europeus naquela época acharem que a escravidão havia sido abolida com o fim do tráfico negreiro em 1850, devido às pressões inglesas, o espanto maior de Ina foi que era possível produzir café sem o uso de mão-de-obra escrava, mas utilizando maio-de-obra livre. Apesar do estereótipo construído sobre a indolência do brasileiro em relação ao trabalho. Vejamos nas palavras de Ina: (...) Na nossa Europa muito pouco se sabe a respeito da lei referente a esse assunto e imaginávamos que a escravidão fora abolida. (...) (Binzer, 1980, p.34).
                        Assim, a década de 1880 mostrava de maneira cada vez mais evidente a decadência do sistema escravista. Com a assinatura da Lei Eusébio de Queiroz, em 1850, proibindo a entrada de novos escravos no Brasil, entre os que aqui restavam, as revoltas e fugas eram cada vez mais freqüentes. Preocupados, alguns fazendeiros procuraram na mão-de-obra livre dos imigrantes uma alternativa ao fim do trabalho escrava. Nessa mesma época, é importante lembrar, que inúmeras regiões da Europa enfrentavam sérios problemas sociais e econômicos, criando motivações para que muitas pessoas deixassem seus países para tentar a sorte em outro local, ainda que distante e desconhecido como o Brasil.
                        Ina deixa transparecer em seus relatos, seu espanto quanto à dependência da sociedade ao trabalho escravo e as conseqüências diante de uma iminente abolição:

Neste país, os pretos representam o papel principal; acho que, no fundo, são mais senhores do que escravos dos brasileiros.
Todo trabalho é realizado pelos pretos, toda a riqueza é adquirida por mãos negras, porque o brasileiro não trabalha, e quando é pobre prefere viver como parasita em casa dos parentes e de amigos ricos, em vez de procurar ocupação honesta.
Todo serviço domestico é feito por pretos: é um cocheiro preto quem nos conduz, uma preta quem nos serve, junto ao fogão o cozinheiro; e preto e a escrava amamenta a criança branca; gostaria de saber o que fará essa gente, quando for decretada a completa emancipação dos escravos.  (Binzer, 1980. p.34).

Na sociedade brasileira do século XIX, o trabalho era visto como algo menor, reservado aos negros. Ina se assustava com o desprezo dos brancos pelo trabalho e a valorização do ócio. Algo compreensível por Ina ser uma protestante, ou seja, valorizava o trabalho, a partir do qual é possível explicar o choque de culturas. No entanto, o olhar apurado de estrangeira, fez com que Ina percebesse também a ineficiência da mão-de-obra escrava:

Como esperar que o escravo, criado em animalesca ignorância, mas dentro dessa ordem de idéias, seja capaz de adquirir outras por si, formando sua própria filosofia? Ele imita servilmente o branco e trabalha o menos que pode. (Binzer, 1980, p122).

Entretanto, a questão da Abolição era algo que afligia Ina, pois se constituía em um problema amplo, que não se resumia à simples libertação dos escravos. Neste sentido, a extinção da escravidão trazia a tona à questão de quem iria tocar as fazendas e, em segundo lugar, a questão associada à ordem social, isto é, a escravidão que mantinha em cativeiro uma mão-de-obra sem especialização e sem investimento em sua educação ou formação, não estaria preparada para o mercado de trabalho. Ina foi feliz em perceber estes aspectos econômicos e sociais a cerca da abolição da escravidão:

Segundo o que venho observando, tenho a impressão de que o Brasil logo de inicio irá sofrer horrivelmente com a abolição da escravatura, porque ainda não se decidiram aqui pela emigração européia, nem oferecem aos mais úteis emigrantes – os germânicos – condições bastante favoráveis. Sofrerá por dois motivos: primeiro pela extinção das forças trabalhadoras nos campos e em seguida pela repentina invasão de suas cidades por elementos nocivos, ou, na melhor das hipóteses, inúteis. (Binzer, 1980, p.123).

Ina mais do que observar, previu exatamente os resultados da abolição no Brasil: os libertos deixaram as fazendas e se aglutinaram nas periferias das cidades dando inicio ao que hoje conhecemos com favelas. Aqui também notamos o eurocentrismo de Ina, onde ela enaltece a superioridade étnica germânica.
A educadora alemã também tece algumas considerações sobre as saídas para este quadro de crise:

Os brasileiros deveriam organizar entre seu próprio povo uma classe operária que ainda não possuem, como também criar a classe dos artesãos; alcançariam esse fim com êxito, se encaminhassem às crianças pretas libertas para exercer um ofício regular. (Binzer, 1980, p.102).

Mais uma vez percebe-se na sua proposta a influência da sua condição de estrangeira. A Europa, nesta mesma época os trabalhadores já estavam organizados em associações, que objetivavam tanto a conquista de melhores condições de trabalho quanto à formação profissional de jovens. Nota-se, entretanto, que os relatos de Ina a respeito dos escravos são bastante contraditórios: enquanto que inúmeras vezes utiliza adjetivos como “mulatinho”, “pretinhos”, ”criatura preta”, ”gente de intolerável indolência”, “beiçuda”, “cara de malandro”, “sujo”, etc, em outros momentos revela-se comovida com a situação dos escravos. Vejamos alguns exemplos:

O pessoal da cozinha é composto de três criaturas (...).
Há um mulatinho de doze anos, com cara de malandro (...).(Binzer, 1980, p.19).

Isso tudo nos serve para demonstrar como no final do século XIX a questão do trabalho era uma dos problemas mais sérios que o Brasil enfrentava.

CONCLUSÃO

Ao concluir o presente trabalho, pode-se afirmar que a literatura de viagem é um instrumento útil de aprendizagem, ao recuperar antigos relatos de viagens, diários ou memórias de estrangeiros que aqui estiveram, desvendando com um pouco mais de profundidade a realidade brasileira de uma certa época, tanto no que diz respeito aos processos produtivos, à condição econômica e às questões políticas como com relação à observação dos usos e costumes de nossa população, ao cotidiano de nosso passado.
No caso particular de Ina von Binzer, esta educadora alemã, teve o privilégio de percorrer regiões do Brasil em uma época de relevante importância histórica como foi demonstrado ao longo deste trabalho. Seus relatos por cartas enviadas periodicamente a Europa, são com certeza preciosas fontes dos aspectos acima mencionados. E ainda mais importante, revelam um olhar feminino sobre questões cruciais a história brasileira como a economia cafeeira e as relações de trabalho no final do século XIX, entre outras. Definitivamente a utilização deste tipo de fontes, devidamente criticadas e cruzadas com outras, contribuem para desenvolver uma nova abordagem no ensino da História regional e nacional.

Referências Bibliográficas

BINZER, Ina von. Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil (tradução de Alice Rosi e Luisita da Gama Cerqueira). 2ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

KOSSOY, Boris; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. A redescoberta do Brasil: um mundo novo para a ciência e para a arte. IN: ________________. Olhar estrangeiro. s.l. s.n. s.d.

LEITE, Miriam M. Livros de Viagem (1830-1900). Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.

PRATT, Mary Louise. Os olhos do Império. São Paulo: EDUSC, 1999.

QUINTEIRO, Tânia. Retratos de Mulher. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.



[1] Trabalho apresentado na Universidade Luterana do Brasil, Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, no Curso de Especialização em Novas Abordagens do Ensino da História, na Dispciplina de Literatura e Iconografia de Viagem como Fontes da História do Brasil. Professora Maria Angélica Zubaran. 2003



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